O Barco que eu sou

Um barco inclinado. Atracado no litoral. Um pássaro empoleirado no barco. A lua envolve o pássaro e uma parte do barco. É noite.



Desadoro o difuso azul de meigos olhos,
O pouco verde muro de música pele.
Bravio, que me lanças, ó mar!… Eis compele
Sargaços sobre o meu dorso aos duros molhos.

Desadoro esse informe gesto de teu rosto,
Tampouco do incolor sujo de tuas pernas.
Vento de valorosos brios, ó, com ternas
Palavras furibundas a bom tira-gosto!…

Desadoro as selvagens ondas mais umbrosas,
Como lenços nocivos que choram sem rosas.
Qualquer dia arvorarei velas em plúmbeas ilhas?…

Desadoro o barco que, decerto, eu sou.
Barco cego, nu, tosco e mouco, que passou
Da linha de refregas pelas Tordesilhas.

5-4-2015.



Lábios de Desapontamento

Uma mulher encostada num tronco de árvore. Um cachecol azul cobre seus lábios.


Esquece-me os teus gentis lábios de mel.
Lábios dóceis, na mente, que me encantam.
Gentis são os teus que gestos desencantam
Viver de falto, e falso, e feio, e fel.

Falta-me metafísica da sórdida
Rosa com seus amargos já macérrimos.
Falsa é a vida, que tão de breve, rimos
De zéfiros — sem porta torta ou saída.

Como uma onda que soez claudica (sonsa);
Pensares entre dois tão descontentes
Quanto a pena e o papel são escreventes.

Fel, que destila vil veneno de onça…
Esquece-me, deveras, sou uma sombra
Que desapontamento a nuvem obumbra!…

4-4-2015.

Ave Alígera

Uma pessoa com cão. E mais três pessoas. Todas numa ponte. Ao fundo, um pássaro voando alto. É um pôr do sol. O quadro usa as cores: laranja vivo, vermelho suave e preto nítido.



Voou minh’alma contrita: ajo por ida
Sem volta. Queira Deus!… que na partida,
Encontres o que não pude te dar;
O afeto que convinha com enredar;

O carinho solícito de duas
Mãos sem mágoas de agruras, ou sem nódoas;
O beijo que singelo, sem aleivosias;
O anelo — tal relevo sem falésias.

Vai!… Esquece-me o vulgar verme daninho!…
Rasga-me como um mau papel almaço!…
Risca-me de tua agenda, o pulcro ninho!…

Ave alígera vai!… Voe pra laço
De à toa passarinheiro! Cá, definho,
Perdido em minério de selva e aço.

3-4-2015.


Teus Ósculos sem Pejo ou Válido Desejo

No fundo, um navio enfrentando uma tempestade. À frente, uma mulher sentada, próxima a um grande peixe.



Afoguei-me em teus lábios muito sintópicos,
Como náufrago em tábua de tal salvação?…
Estrangulei as não ditas sintaxes?… Micos
Calei no peito infante?… A maquinação

De xodó que teci zeloso em minha mente?…
Arranhei a garganta das boas horas mortas?…
De prejuízo, fui aranha tão demente
Quanto a teia tecida que por pernas tortas?…

Engendrei planos mil para galgar os montes
E as montanhas íngremes?… Saltei as fontes?…
Mosca tosca, decerto, enredada por beijo

Perene e mortal — fui e sou. Tão somente
Mosca (sem asas ou pernas), temente e descrente
De teus ósculos sem pejo ou válido desejo!…


Coração Ferido por um cão Perdido II


Tu eras peludo até que dizer basta;
Levantavas as patas tristes, gastas;
Amor davas, querer sem recebê-lo
Em troca, por ser esse ato mui belo;

Lambias o meu rosto em afago fora
De hora, embora enjeitasse eu no agora;
Que sempre balançavas, cheio, o rabo
— Eras tão alegre quão caldo de quiabo;

Tu, só tu, manso e amigo, cá, guardava-me
Do trovão, do ladrão, qualquer enxame
De abelha mui carnívora ou vexame.

Quem me dera que Amar tão simples fosse
Assim!… Aí, veio um carro, vrum, vrum!… Foi-se
O cão, catarro qual sem brusca tosse.

9-2-2015.

Coração Ferido por um cão Perdido I


Se, de Amor, coração jaze ferido?…
Direi que não!… Quiçá decepcionado
Por esse lago claro que indeciso
— Tua partida de cão abandonado…

Sem assombro, achei-me compelido
A adejar por esquinas, ruas do bairro…
Machuquei as tampinhas, voei narciso,
Espanquei moribunda Lua de siso,

Estacionei pulcrícomo meu riso
Na garganta grandiosa de Gargântua…
As estrelas que riam da desnua

Agonia, sofreável: querer ver-te;
Embora, no meu imo, a ave verde
Dizia-me da razão que não, conciso.

8-2-2015.

Goiamum


Heráldico cavaleiro medievo e cavalo
De oito patas e táticas. Tanque de guerra,
No teatro de ações, dentro do manguezal, que erra
Entre a lama suja e roto lodo a desgostá-lo.

Eis que azulado crustáceo rompe a lama preta.
Com as suas desiguais pinças, caça, a garfo e faca,
O de comer. Ressentido, a barcaça fraca
De carapaça revira o lixo e mutreta,

À procura de sustento do tempo social.
Goiamum só degustou da carne o seu duro osso;
Goiamum provou deserto, só, por manancial.

Eu vejo de goiamum, hoje, o quanto eu sou: fosso
De fossa é minha vida; ando sem ponto cardeal;
Como detritos, e lixo fezes, desde moço!…


7-2-2015.

Aquário de Vida

À mercê dos favônios, Bisviver jigajoga, Bajogar a conversa, Retisnar os neurônios… Lida que se renova. Quem me dera essa trela… Fá...